2.10.11

Meu avô

Voltemos rapidamente para década de setenta. Eu com uns 5 ou 6 anos, numa idade em que minha mãe já me deixava andar sozinho pela casa da vovó. Aos meus olhos miúdos, a casa era uma mansão. O quintal comprido, cheio de perigos e medos: os gatos vadios, a mariposa gigante, os pios soturnos que minha avó dizia ser de corujas, mas eram rolinhas. Muitos morcegos. Uma garagem enorme com velocípedes e bicicletas de todo o tamanho. O quarto do tio cujo sofá escondia no forro dezenas de revistas Playboy americanas. O piano onde eu comecei a tomar gosto por música. O coqueiro na frente da casa que fornecia água de coco à vontade. As torradas com manteiga e açúcar que minha tia fazia. Enfim, a casa era um paraíso para uma criança.

E eu deixei por último o mais interessante dos aposentos: o escritório do vovô.

Meu avô materno, João Baptista de Mello e Souza, morreu em 1969, quando eu tinha 2 anos. Eu não me lembro dele, mas já sonhei que conversava com ele e a sua aparência era tranquila, familiar e reconfortante tal como ele aparece nas fotos.

Escutei, atento, as histórias a respeito dele, contadas por minha avó, minha mãe e meus tios.. Não ficou tão famoso quanto o seu irmão, o "Malba Tahan" Julio Cesar Mello e Souza, mas foi um professor adorado pelos seus alunos, sábio em história e em português, literatura e outras ciências várias. Escreveu livros, traduziu outros, foi entusiasta da "linguagem universal" Esperanto e do escotismo. Foi um pai de família exemplar, um avô bondoso.

Mesmo sem lembrar dele conscientemente, venho confeccionando uma imagem bastante nítida de quem foi J.B. Mello e Souza. Com todas essas informações coletadas aqui e ali, lendo os livros escritos por ele e, principalmente, tendo acesso livre ao seu escritório, nos fundos da casa. Depois que ele faleceu e eu cresci, o escritório ficou exatamente como ele o deixou. Eu tinha permissão de pegar a chave, entrar e mexer em tudo, contando que não deixasse nenhuma bagunça para trás.

A parede mais comprida da grande sala era recheada de livros - a Biblioteca. Centenas deles, organizadíssimos em prateleiras, Todos eles encadernados, ex-libris de J.B. Mello e Souza grudado na contra-capa; com títulos, autores e as iniciais "JBMS" gravadas em ouro nas lombadas. As capas duras eram ilustradas com marmorizados criados pelos filhos. A casa foi demolida depois que minha avó morreu, e o conteúdo do escritório foi divido entre os filhos e netos. Um dos meus livros preferidos, o "Livro da Jangal e Riki-Tiki-tavi", ficou para mim e estou contando a história de Mogli para a minha filha.

No meio do escritório havia a mesa king size, de madeira de lei, com uma cadeira bastante confortável para os padrões da época e trocentos mil cacarecos em cima, nas gavetas e nos armários em volta. Um universo em miniatura que rendia horas e horas de pesquisa minuciosa.

Eu me perdia entre as coleções - de selos, de lápis, moedas, miniaturas, broches, medalhas, tiquetes de viagem, curiosidades estrangeiras, grampos, fitas, tinteiros, faquinhas para abrir correspondência, miudezas mil. E a reposta à enorme pergunta "quem foi meu avô que montou esse escritório fantástico" foi se revelando bem clara e definitiva. Foi um grande homem.

E esta afirmação veio a se confirmar mais uma vez, recentemente, quando minha mãe resolveu procurar pelo nome do pai no Google e achou a reprodução de um artigo de um jornal de São José dos Campos, no Blog da professora Sõnia Gabriel, o interessante Mistérios do Vale. Sônia está pesquisando a vida de meu avô - conseguiu até descobrir a casa onde ele morou em Queluz - e se diz encantada com tudo o que lê. Está trocando e-mails com a minha mãe e as duas estão resgatando vários detalhes da vida de JBMS.
Fico imaginando a felicidade que Sonia teria se pudesse voltar no tempo e, como eu fiz, visitar aquele velho escritório, conhecer suas coleções, seus livros, as miudezas que fizeram parte da minha infância e que e deram pistas claras da grande e generosa personalidade de João Baptista de Mello e Souza, meu avô.